Uma reflexão em torno do RSI – desconstruindo mitos, construindo pontes, propondo caminho(s)

Perspectiva(s) 

Este artigo surge com o propósito de materializar algumas reflexões que temos realizado com base na nossa experiência enquanto técnicas (psicóloga e  designer social), no acompanhamento de pessoas beneficiárias do Rendimento Social de Inserção (RSI). À luz desta temática iremos abordar o tema tendo em consideração  elementos como reinserção social, empregabilidade e exercício pleno da cidadania ativa, porque no nosso entendimento são fundamentais para uma perspetiva integrada e holística. Corroboramos, o parecer emitido pela EAPN (2021) que sublinha a importância da medida enquanto apoio fundamental “na melhoria das condições de existência das pessoas e, portanto, é relevante no combate à severidade da pobreza”. Será assente nesta perspectiva que iremos refletir sobre alguns pontos que acreditamos serem necessários melhorar na medida, tendo como propósito a melhoria da qualidade de vida das pessoas beneficiárias do RSI. 

Estabelecendo um terreno comum – Rendimento Social de Inserção – de que falamos?

Os Esquemas de Rendimento Mínimo (ERM) são parte integrante de sistemas de proteção social abrangentes e baseados em direitos universais. O RSI é um apoio destinado a “proteger as pessoas que se encontrem em situação de pobreza extrema, sendo constituído por: uma prestação em dinheiro para assegurar a satisfação das suas necessidades mínimas, e um programa de inserção que integra um contrato (conjunto de ações estabelecido de acordo com as características e condições do agregado familiar do requerente da prestação, visando uma progressiva inserção social, laboral e comunitária dos seus membros)”. (Segurança Social, 2019). Esta medida constitui um apoio fundamental na melhoria das condições de existência das pessoas e, portanto, é relevante no âmbito do combate à severidade da pobreza.

 

 

Refletindo 

Como é que se pode defender que o RSI visa uma progressiva inserção social, laboral e comunitária dos seus beneficiários, quando algumas das suas políticas condicionam esta inserção?  

Problematizando 

Trazemos à reflexão exemplos de situações com as quais nos deparamos, no desenvolvimento das nossas atividades enquanto Associação. O nosso objetivo é empoderar e capacitar as pessoas com quem trabalhamos que maioritariamente são beneficiárias do RSI. A El Warcha funciona, à semelhança do que acontece com a maioria das associações sem fins lucrativos,  através de projetos, sendo que a maioria dos dinamizadores prestam serviços em regime de freelancer, dada a fragilidade dos financiamentos da Associação. Apesar de vivermos esta fragilidade, pretendemos contribuir para uma sociedade mais justa e mais coesa, e portanto, procuramos, na nossa prática ver refletidos esses valores. Assim sendo, conseguimos através dos projetos de capacitação que promovemos, que alguns dos nossos participantes sejam remunerados, e que esta remuneração seja digna, justa e que corresponda às horas do seu trabalho. Contudo, a atribuição desta remuneração não é fácil, pelas seguintes razões: 

  • A maioria das pessoas que acompanhamos não tem atividade aberta nas finanças  – a decisão de abrir  atividade pode colocar em causa a perda do  RSI de forma abrupta;  
  • No caso de ser um ato único cujo valor ultrapasse os valores do RSI também perdem o RSI; 
  • Há avaliações de 6 em 6 meses dos seus rendimentos se houver algum tipo de rendimento extra superior ao subsídio a pessoa perde o RSI e fica sem esse apoio durante um ano e tem de entrar novamente em todo o loop burocrático e longo para o conseguir. 
  • Se a pessoa consegue uma oportunidade de trabalho e comunica à segurança social, este apoio é cortado automaticamente a partir do primeiro dia de trabalho e não a partir do momento em que recebe o primeiro salário, o que faz com que a pessoa possa acumular dívidas e se sinta desamparada muito rapidamente. 
 

Estas situações, que aqui expomos, são alguns exemplos de situações que aconteceram a pessoas com as quais trabalhamos. Compreendemos, então, que todas estas questões condicionam uma grande parte dos beneficiários do RSI, na tomada de decisão de trabalhar. Se por um lado trabalhar permite uma maior estruturação social e financeira, por outro, existe o risco de prestarem determinados serviços pontuais e depois perderem o único rendimento estável ao qual têm acesso.

É uma decisão profundamente complexa e decidimos trazê-la à discussão exatamente porque a partir daqui existe um preconceito profundamente enraizado em relação aos beneficiários do RSI: “Eles não querem trabalhar, são subsídiodependentes”. Entendemos ser benéfico desconstruir este preconceito à luz daquela que é a realidade dos beneficiários da medida. Procurando propor e refletir acerca de caminho(s) que pensamos poderem contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Estamos perante ciclos de dependência em relação à medida (não por opção dos próprios mas sim fruto de todas as condicionantes que aqui expomos) e as pessoas só os conseguem quebrar se conseguirem um trabalho que proporcione mais estabilidade, nomeadamente ofereça um contrato. Sabemos que esta realidade é cada vez mais escassa e o mundo avança para outros tipos de trabalhos alternativos, nomeadamente part-times, trabalho por tarefas e regime de prestação de serviços.

A EAPN tem vindo a estudar e a acompanhar a medida desde a sua implementação, e corrobora precisamente estas dificuldades que temos encontrado no terreno “sabemos que ERM inadequados são suscetíveis de prender as pessoas num ciclo de dependência e minar os caminhos para a inclusão e coesão social.”

Isto não significa, contudo, que a todos aqueles que necessitam de prestações de

RM, seja garantido um nível de vida digno ao longo de toda a vida. Muitos Estados Membros fornecem ERM que não correspondem às necessidades reais dos beneficiários. Não conseguem elevar milhões de pessoas acima do limiar de pobreza e/ou deixar os indivíduos em causa estigmatizados, isolados e presos num ciclo de pobreza e exclusão social”. (EAPN, 2020).

Por outro lado, também condicionam as entidades empregadoras que queiram empregar a curto e médio prazo esta população. Temos multiplicado esforços no sentido de conseguirmos remunerar dignamente as pessoas que acompanhamos, e nem sempre é possível fazê-lo, pois muitas vezes deparamo-nos com constrangimentos burocráticos inerentes à medida. 

O valor da prestação não é fixo, varia consoante a composição do agregado familiar e/ou os seus rendimentos se forem alterando. O tecto máximo de apoio a 100% do RSI é de 189,66€ por pessoa/mês, um valor que sabemos não ser suficiente e que portanto deveria ser entendido como um complemento e não como única e exclusiva fonte de rendimento. Falando do ponto de vista humano e não burocrático, para a pessoa receber este valor, tem de estar numa situação muito frágil socioeconomicamente, no limiar da pobreza extrema, o que deveria implicar um  acompanhamento por técnicos formados e sobretudo informados sobre as diferentes soluções e possibilidades de ação.

A medida pressupõe a redação de um Contrato de Inserção, que de acordo com a nossa experiência acreditamos que deve ser partilhado e participado pelos seus beneficiários, ou seja, deve existir entre a técnica de acompanhamento e o beneficiário um ajuste e definição de possibilidades de ação e caminho(s) possíveis de acordo com as necessidades reais do beneficiário. Só envolvendo os beneficiários nas tomadas de decisão, nas escolhas, na exploração de possibilidades é que podemos falar de processos de inclusão participativos e em último caso democráticos. 

Acreditamos ainda que este acompanhamento deveria ser o mais individualizado possível, e não semelhante para todos os beneficiários, pois as suas realidades, experiências profissionais e de vida, não são iguais, sendo que aquilo que lhes é comum é viverem no limiar da extrema pobreza, e portanto serem elegíveis para beneficiar da medida. Falamos assim de uma abordagem de inclusão ativa integrada, com estratégias multidimensionais. 

Além disto, devemos garantir que “as pessoas que deles necessitam possam permanecer ativas e participar na sociedade, ajudam-nas a reconectar-se ao mundo do trabalho e permitem-lhes viver com dignidade.” (EAPN, 2020). Isto pressupõe um acompanhamento no seu sentido mais complexo – pressupõe, portanto, que os técnicos estabeleçam relações proximais com as pessoas que acompanham. Dentro dos vários eixos que apoiam a pessoa em RSI, o mote de trabalho deveria ser contribuir para que as pessoas consigam sair destas situações, num processo multidisciplinar e complexo de procurar e encontrar várias soluções adequadas considerando os seus interesses e objetivos de vida bem como garantir todas as condições necessárias para a mudança. Não é suficiente garantir a assinatura e renovações dos contratos.

Este acompanhamento muitas vezes não é feito levando-nos aqui a refletir também sobre a formação e adequação da mesma por parte destes técnicos, e ainda sobre, a quantidade de processos que acompanham. Um acompanhamento individualizado, proximal e aprofundado não se coaduna com a responsabilidade de acompanhar um número infindável de pessoas, além da acumulação da gestão de casos com uma outra série de tarefas e responsabilidades. 

Decidimos tomar como exemplo dois eixos muito importantes no âmbito da capacitação e integração que fazem parte do plano de reinserção social: o Eixo 2- Emprego e Formação Profissional e o Eixo 4- Participação e Cidadania. 

Acreditamos que o apoio pré-profissional é muito importante para a valorização dos conhecimentos e experiências das pessoas e para reforçar o seu autoconceito e autoestima. Sabemos que o IEFP disponibiliza diferentes formações neste âmbito que para muitos dos beneficiários do RSI revestem-se de um carácter obrigatório, sob pena de verem cancelada a sua inscrição no Centro de Emprego enquanto Desempregados de Longa Duração, correndo o risco de perderem o direito ao RSI. De acordo com o nosso ponto de vista e tendo sempre como base a experiência que temos enquanto técnicas que acompanham pessoas nestas circunstâncias  vemos muitas vezes o mesmo erro ser cometido, a obrigatoriedade e imposição de participação numa formação que não é relevante para os objetivos de vida da pessoa nem de acordo às suas necessidades e interesses. 

Esta questão que aqui expomos vem, mais uma vez, reforçar a necessidade de refletir acerca da adequação da formação dos técnicos, e obriga-nos a  repensar os modelos subjacentes à intervenção social. Defendemos uma perspectiva de capacitação, empoderamento e participação ativa das pessoas nos seus processos de reintegração e inclusão sociais, e não um modelo assente na hierarquização, onde os beneficiários são sujeitos passivos que se limitam a obedecer àquilo que os técnicos definem como sendo o melhor caminho para eles. Não compreendemos como é que apesar de sucessivos fracassos na inclusão de pessoas em situação de extrema pobreza ainda continuamos a manter os mesmos mindsets. Sendo que a literatura também corrobora que o sucesso das intervenções aumenta a partir do momento em que as pessoas se sentem implicadas nos processos. (EAPN, 2011).

 

Queremos referir também que  entre a capacitação e a integração no mercado de trabalho, deve existir uma ligação. Devemos unir esforços no sentido de proporcionar respostas integradas, preconizando o trabalho em rede de forma efetiva. Continua a não fazer sentido empurrarmos pessoas para a formação e capacitação profissional, sem conseguirmos ter uma rede e respostas que lhes sejam subsequentes. Muitas pessoas fazem formação e depois não conseguem ter resposta, isto gera frustração. É fundamental a este nível trabalhar as expectativas para que correspondam à realidade, diminuindo os níveis de frustração, desgaste e desilusão em relação às possibilidades de ação.  

Para concluir, queremos reforçar a importância da participação e do exercício de uma cidadania ativa plena, do trabalho em parceria e nas comunidades, da valorização de atividades e projetos dinamizados por diferentes associações que trabalham a nível local. Este trabalho local também contribui para a coesão económica, social e territorial. 

Estes projetos são também uma rampa de lançamento, na medida em que além de capacitarem as pessoas no que respeita a competências específicas e técnicas (por exemplo, carpintaria) capacitam-nas no âmbito de competências emocionais  – são, portanto, uma experiência preparatória prévia antes da inserção ao trabalho. 

Pretendemos mostrar que existe vontade de contribuir para a inclusão das pessoas beneficiárias do RSI, que estas pessoas querem aceder a oportunidades, que existem caminho(s) diferenciados e diferenciadores e que é urgente uma mudança de lógicas subjacentes à atuação no âmbito da intervenção social. 

Expostas algumas das reflexões que temos vindo a fazer, propomos que exista uma mudança de políticas, nomeadamente na promoção do acesso, ou da acessibilidade às diferentes hipóteses de trabalho, havendo em alguns casos um apoio pré-profissional, para aquelas pessoas que ainda não se sentem completamente preparadas para entrar diretamente num ambiente de trabalho regular e que tenham a possibilidade de frequentar ações de formação formal e informal de acordo com os seus interesses e necessidades. 

Referências:

– Tomada de posição da EAPN sobre o rendimento mínimo (EAPN, 2020) 

– 25 anos de Rendimento Social de Inserção. Melhorar a sua eficácia na luta contra a pobreza. (EAPN, 2021)

– EAPN Portugal, Guia metodológico sobre participação das pessoas em situação de pobreza e exclusão social, Redação 9, Porto, 2011

– https://www.seg-social.pt/rendimento-social-de-insercao#

Texto por:
Alexandra Fiães – Psicóloga – Saber Compreender
Inês Marques – Designer Social – El Warcha

Biografia das autoras:

Alexandra Fiães nasce em 1991 nos subúrbios do Porto. É no Mestrado em Psicologia do Comportamento Desviante e da Justiça que encontra a formação que a realiza. Acredita que as ruas são lugares de (des)encontro e palco privilegiado para a ação. Encontra, no trabalho de terreno, na postura proximal e na aceitação genuína e na e compreensão do Outro, pistas para a persecução da melhoria das condições de vida de pessoas em situações de vulnerabilidade extrema. Costuma dizer que, não raras vezes, trata-se de fazer as pessoas sentirem-se pessoas. Define-se como ativista pela Defesa dos Direitos Humanos. Tem vindo a exercer funções como formadora de pessoas em situação de desemprego de longa duração, desenvolvendo projetos de intervenção comunitária através de metodologias participativas. É voluntária e membro da direção da Associação Saber Compreender desde  2015. Atualmente, está a realizar uma pós graduação na Universidade Católica em Desenvolvimento Local Colaborativo e a coordenar a mediação entre as pessoas em situação de sem abrigo e a equipa de dinamizadores no projeto SOMOS Existimos, Criamos, Somamos (P)ARTES.

Inês Marques trabalha na área do design social e participativo há 5 anos. Experiência em gerir projetos educacionais e liderar workshops sobre critical design e design e inovação. O seu trabalho foca-se na descoberta de soluções para problemáticas como inclusão social, interação e benefício social no sector público e privado. Mestrado em Material Futures da Universidade de Central Saint Martins em Londres, um curso que explora design, tecnologia e ciência aplicado aos problemas que a sociedade enfrenta a nível social, ambiental, cultural e económico. Experiência como mentora e designer, tendo organizado diversos workshops desde 2016, em instituições, organizações e coletivos como UAL – Central Saint Martins (Reino Unido), IFA Paris (France), Do It Now Now (Reino Unido e Nigéria) e El Warcha (Reino Unido e Lisboa) e trabalhado como designer em Studio Devet (Bélgica e Palestina), Associação Luz Linar (Portugal), Epiphany ideas ltd (Reino Unido), The Future of Walking (Reino Unido), The Fellowship of Questions (projeto online europeu) and City Mine(d) (Reino Unido). Inês Marques é co-fundadora do projeto El Warcha Londres e Lisboa.